sábado, 25 de setembro de 2010

Cuscuz com música

CUSCUZ COM MÚSICA
por Zé Alípio Martins

Sentar-se em tamborete de barraca de comida, em dia de feira, é comum para aqueles que admiram iguarias pesadas.
Sentar-se próximo àqueles que, já cedo, deram conta do seu serviço e esperam quebrar o jejum com um cuscuz, é nos ofertar, em prato cheio, de causos, contos, crônicas, poesias, histórias e música. In loco*!Oferecidos a todo lado e de maneira lúdica e simples podemos nos deliciar como quem também, a muito, jejua.
O descarregar das sacas de milho, arroz e feijão prenunciaram-se os aquecimentos de corpos mal dormidos.
Das caixas de verduras às mantas de carnes, expulsaram os últimos Morfeus* insanos.
Dos olhares opacos, a exatidão das solicitudes: Ares de atenção!
Das bocas entreabertas e sem conformidades; sorrisos sórdidos e presos às faces ressequidas. Um bocejar solfejado a meia boca, bocachiusa,* emitiu um melismático* fraseado.
- Não são somente homens!
- São homens, mulheres, meninas e meninos. Às vezes uma família inteira cantarola: Um pro outro, um após o outro.
- São uns “Brutus”!
- Brutus. Parecem mesmo. Antigos romanos!
- Pó de farinha no rosto das mulheres substitui, momentaneamente, o pó de arroz. Hoje! Sem festas e/ou vaidades.
Saco furado do Coloral* espalhou-se e como “Rudge” bronzeando as peles! Claras, como Lusitanas recém chegadas do Porto!Pardas, na sutil demonstração da miscigenação das belezas.Em epiderme avermelhada, pois Ameríndios que somos ou em negra melanina da africanidade não rara.
“Licença meu filho”. Uma velha anciã pede passagem... Tordilho na cabeça apóia o pote d’água que respinga seu corpo cansado e lento como quem marca o caminho da volta.
- Será que volta?
Meninos adoram! Fazem questão de irem pisando melecando o chão e seguem à busca dos pais. Logo darão o troco à sorte ou a fome.
Um cala-boca daqueles é recheio pro cuscuz fresquinho que Dona Maria da barraca acabara de desenformar.
Um chega... Outro... Se “aproxêga”. Aos poucos, como numa “Confraria”, se encontram e logo são singulares por semblantes e sons.
Vozes graves (homens) em uníssono delineiam uma frase medieval. Logo mais brilhante com a intervenção das agudas (mulheres e crianças). É um murmurinho dos pecados que cresce quase estático, com poucos saltos. Meloso e austero como um Cantochão*.
Por breve momento viajei a um “Mosteiro Beneditino” e logo a uma “Catedral Renascentista”. Posso sentir a polifonia das vozes cantantes. Ricas em linhas horizontais. Valorizadas e atendidas por seus pedidos. Porém, de difícil entendimento quando expressas ao mesmo tempo! No mesmo compasso e andamento.Um contraponto florido dos diabos.
Chega a atendente e rapidamente promove um levare* com uma das mãos que segura uma colher, como que uma batuta*, anunciando o íctus*.
E então! Todos entram e sentam. Já conhecem a sua condução. São semanalmente ensaiados. Ou diariamente ensaiados. De feira em feira...
Atordoada a tantos pedidos, expressa um corte súbito. Gesto entendido. Todos se calam ou diminuem a danação em escala cromática descendente*.
Preferiria um mf*, para não chocar essa gente. E,os poucos, uma dinâmica mais branda. Quem sabe em p* e talvez pp*, para destacar os solos, os pedidos a serem anotados.
- Mas, ela sabe!
- Explica-me meu vizinho de tamborete.
A sujeira deixada em cada veste denota qual é o papel daqueles atores.
Camisas impressas divulgam os seus domínios e lazeres.
Nos ensinam a conjugar o “presente do pretérito perfeito”.

• FELIZ 2006
• VOTE EM ZEZINHO DE DEDÉ 2008
• 1ª CAVALGADA DE JEGUE do Canto Escuro

Quem será o protagonista nessa “Opereta Dantesca*”.
Teremos como tema: “Os Desbravadores da relva matutina”?
Serão eles figurantes? Coadjuvantes? Diretores? Mestres? Tocadores? Brincantes desse “Folguedo” semanal?
Mãos sujas de terra e lama são luvas da Aristocracia portuguesa. Cheiro de peixe seco impregna os corpos suados e sufoca o perfumado Cashmere Bouquet *.
- Chega menina! - Ordena a patroa.
- Aqui não tem esse negócio de garçonete não! Não tem bandeja inox nem aqueles montes de frescuras, mas tem comida boa, gostosa e farta!
- Cheira tanto que dar uma roedeira danada no estomago e arranca lá de dentro uma vontade enorme de sair comendo de um tudo.

1º Ato – Os encontros.
Daqueles que trabalham fixos em suas barracas com os outros que passam.
Dos barraqueiros itinerantes com os fixos.
Dos mercadores e seus “pregões engraçados” com os itinerantes.
Dos que descarregam as “coisas” transportando na cabeça com os que observam.
Vão...De um lado e de outro. Pra um lado e pra outro.
Ou d’aqueles que, semanalmente, vão à feira só “lavar a jega”sem medo do Colesterol LDL.

2º Ato – O Remorso (ão)
- Quando cai doente quer culpar a mulher da comida!
- Ou a rabada da vaca!
- Nunca mais como “essas coisas”.

3º Ato – Estratégias.
Tem aqueles que não assumem que comem “essas coisas” e passam lá por trás carregando, em suas belas sacolas, escondidinho um “fato de boi fresquinho”, mocotó de boi, “alvinho”.
De longe, por cima de tudo, só se ver pé de alface e molho de coentro bem verdinho.
- Pra que isso! Se seu olhar diz tudo. Doido pra “cair matando” nesse cuscuz com ensopado.

4º Ato - Contextualizando
Sim, e em falar em cuscuz...
Esse amarelinho é comido de Norte a Sul do nosso Continental Brasil. Está presente em todas as mesas e em todas as regiões do país. Tem versões e adaptações diversas. Combinações de todo tipo: Com carne de boi cozida e assada. Galinha ao molho branco ou pardo. Rabada, mocotó, fatada, com peixe, moqueca, escaldado, cortadinho de verdura...
- Ô menina! Me vê o meu com mocotó.
- Tá afoito véio?
- O meu com ensopado de carneiro.
- Tá certo também.
- Traz um pouco de pimenta.
- Tá na mesa.
- Pra mim com porco assado.
- Vou ver.
- Tem?
- Tem.
- Tu sabes fazer cuscuz? Então, anota a receita.

4º Ato – Os finalmentes

RECEITA DE CUSCUZ

Fubá “sarolhado” e sal a gosto
Num tacho de barro põe pra descansá
Se quiser pode enfeitar o danado
Com queijo, salame ou carne de jabá
Mas querendo come-lo de forma tradicioná
Basta que o bote no fogo
E espere o danado cheirá.

Outros te batizam com nome sulista
Sofisticando em legumes o seu paladá
Mas é o mesmo cuscuz que alimentou Dona Julia
Seu filho Alfredo e a neta Guiomá
- Obrigado!
- Rapaz, já comi um feito de fubá de roça em cuscuzeiro de barro... Que é um negócio sério.
- É gostoso também feito na boca da panela. Minha mãe improvisava quando a gente viajava e não levava o cuscuzeiro...
Era só colocar a massa num prato, envolver com um pano de saco “limpo”, virar o prato de cabeça pra baixo na boca de uma panela com uns três dedos de água e amarrar. Daqui a pouco olha o danado cheirando.
- O gosto pelo cuscuz deve ser pelo fato de sua composição conter ingredientes das três culturas estruturantes do nosso povo.
- Deve ser por isso que tanto agrada!
- A base da cozinha brasileira sem dúvida é: a cozinha portuguesa a indígena e a africana.
É só observar os ingredientes no feitio dos diferentes pratos. Da mesma forma, e proporção que na “Cozinha”, acontece com a nossa música. Os nossos gêneros musicais estão recheados desses três elementos.
Uma pitada a mais ou a menos de ingredientes provindos desses povos díspares, “não chega a estragar a receita”. “Fica é no ponto”.
A diáspora nos contaminou em rítmicas exclusivas.
Dos presentes a “milênios”, sutis artefatos timbrísticos.
Da ansiedade do colonizador em “retórica improvisada” à imposição dos fazeres ocidentais, uma re- leitura, aos nossos moldes.
E assim ficamos... Fartos!
Cuscuz com música em “teatro de arena” com cobertura de lona plástica.
Opereta em sons guturais.

Referências existências aos sem vergonhas do nosso povo CUSCUZ.
• WWW.BarracadeD.Maria@Cuscuz.com.br

*In loco = do latim no local (ali mesmo na barraca da feira)
*Morfeus= Deus grego do sono (desculpa de quem ficou tomando umas até as tantas)
*bocachiusa = cantar com a boca entreaberta (pra não espanar a farinha)
*melismaático = uma sílaba para uma enorme linha melódica (entendeu?)
* Brutus = do romano (Brabo)
* Coloral = Corante bastante usado em culinária nordestina. (ai você conhece)
*Rouge= pó usado em maquiagem. (pra as caras pálidas)
*uníssono = mesmo som.(quando afinados)
*cantochão= melodias cantadas sem saltos como o Canto Gregoriano. (vá pesquisar)
*polifonia = do grego várias vozes, forma de composição renascentista. (é bom ouvir)
* contraponto florido = contraponto musical em diferentes durações .( não é fácil deexplicar)
*aproxêga = termo caipira, mesmo que aproxima. (é pouco mais que isso)
*levare = do italiano levantar, termo usado em regência ( não é de classe)
*batuta = instrumento do maestro. (para condução de entradas e sinais musicais)
*íctus = mesmo que primeiro. (tempos musicais)
*escala cromática descendente = escala musical que utiliza semitons do grave para o agudo
* mf,p,pp = sinais de intensidade: mf= meio forte, p= piano(fraco) pp= pianíssimo(+fraco que piano)
* Opereta Dantesca = Pequena ópera com referência ao escritor Dante Alighiere da Divina Comédia
*Folguedo = festas da cultura popular.(reisado,sambas,pastoril,chegança,guerreiro...)
*Cashemere Bouquet = marca de desodorante popular.( certamente vai dizer que já usou)
*Guturais = sons produzidos na garganta (ríspidos e rouco)

Só em Guga!

Só em Guga...
Para o escritor Guga do boteco “Esquina do povo”- Alagoinhas-Ba.
Por Zé Alípio Martins

Cerveja e Acarajé só em Guga. Mistura perfeita.
Mas, também tem o velho bate-papo, a velha resenha.
Entre acarajés e resenha e toma-se outra.
Na passagem pra servir outro cliente, e o velho Guga opina sobre assunto que pegou pela metade.
- Ê, Rapaz ! Não é sobre isso não!#¨$ @?*!)?!? Retruca Afonsinho, irado.
E assim entra a noite... Passa a esposa “boa” de fulano de tal...Aquele menino(a) com jeito de boiola... Àquele velho ensaiando poesias... A gatinha que gosta de acarajé, mas come abará para não perder a forma. Encosta um bêbo no balcão e bate uma...Alguém pergunta se tem onde lavar as mãos e passa horas no mictório...Tem uma mesa com quatro cadeiras e um solitário...
- Posso ?
-Não, tô esperando alguém.
- E esse alguém não chega.
Três pessoas atendem aos celulares e parecem conversar com quem passa do outro lado da rua.(Que mania?)
Daqui a pouco uma “topique” pro Riacho D'Guia ,levando professores que sonham no retorno tomar uma...
É conversa e assunto que nunca se esgotam e a gente, marca sem querer, de jeito nenhum, pra o outro dia. E começa tudo de novo...
Cerveja, acarajé, Guga, os amigos, resenha,papo,mulher,celular,”topique”...

E... até lá!!!
-Onde?
Em Guga (Esquina do povo), é claro!!!!!

É simples uma... NOITE DE SÃO JOÃO/NOITE DA SANFONA

É simples uma...
NOITE DE SÃO JOÃO/NOITE DA SANFONA
Por Zé Alípio Martins

É simples fazer uma...
NOITE DE SÃO JOÃO/NOITE DA SANFONA
Por Zé Alípio Martins

Uma noite pouco comum...
Céu escuro, estrelas embaçadas por uma fina camada de fumaça, friozinho vindo de cada lado.
Cheiro parecido em cada casa...
Bandejas postas em mesas decoradas com papel de seda.
Gente sorridente...
Sem muita cerimônia nos convidavam a entrar.
Gêneros musicais...
Quase era a mesma música tocada em cada lugar.
Um instrumento específico a SANFONA.
Tá no Xote, no Baião, No Coco, na Ciranda, na Marcha e no Forró. Gênero que, por sinal, virou sinônimo de festa e desprezando o seu sincopado bastante acentuado ritmicamente pelo “bacalhau”(vareta) da zabumba.
Fole abre, fole fecha e dissimula folia a todos...
Forró é Forrobodó.
Saudosos relembram os “velhos São João”!
Garotada corre pela rua a soltar bombas acesas em tição em brasa.
Um “RIPOCAR” num “PIPOUCO” de assustar se ouve repentinamente.
É fácil comemorar o São João...
Oh! Menino me ajuda a pegar aquele monte de madeira velha encostada ai no fundo do quintal...
“Vamo ali cortar umas pindobas (palhas) pra enfeitar a rua”.
As meninas já desfiam um saco de alinhagem e retiram o barbante pra colar bandeirolas.
Revista velha de Fotonovela lida e relidas durante o ano são recortadas e coladas com goma de tapioca.
É festa que integra e tudo ao som da SANFONA.
Vizinhas se reuniram ontem pra espremer o jenipapo e fazer a calda do licor.
Os Seus Zés, do roçado trouxeram milho verde e aipim pro bolo.
A Radiola “Tartecla linear” deslizando de óleo peroba, expõe a capas dos mais novos LPs.
São: Gonzagas, Jacksons, Marinêses, Pedros Sertanejos, Abdias(s), Genaros, Dominguinhos(s),Sivucas, Trios Nordestinos...
Em todos , um instrumento é unânime! Um timbre que nos remete à felicidade. .
Um só sotaque.
È hora de “desenvergonhar” os sentimentos e aflorar a autenticidade.
Aproveitem! É noite de São João!
Pode dançar meio desengonçado... “Que o povo não liga besta”.
Senta aí de qualquer jeito nesse tamborete... “Que ta é macio”.
Come sem limpar a boca. “Que ta é gostoso”.
Limpa a goela com licor.”É de jenipapo”.
Acocha a perseguida num rala fivela d’aqueles.
E tome SANFONA.
Não importa a quantidade de baixos.
Concertina de 80 baixos.
Pé de bode de 8baixos.
Acordeão ou Acordeon de 120 baixos.
Gaita de fole de 48.
Piano de pescoço...
Êpa! Puxa o braço da agulha que o disco enganchou.
- Vira pro lado B!
E tome Forró.


Alagoinhas
19/06 2009